Três e meia. Marinésio se despede dos carros, mansões e cervejas na praia e olha de lado. A mulher emana um ronco compassado, discreto, até. No chão, ao lado da cama, um colchonete abriga castelos, princesas e fadas, além das duas filhas. Levanta ainda inebriado pela riqueza inconsciente. Lava o rosto e vê a ilusão descer ralo abaixo. Pensa: “Tá tarde”.
Os amendoins e castanhas estão embalados desde a véspera, como de costume. Junta tudo num só volume, um fardo. Calça o sapato com a sola solta, põe duas broas de milho na bolsa surrada, pede proteção ao céu e sai.
Ao ganhar a rua, Marinésio anda olhando pro chão. O céu já está indeciso, multicor. Atravessa ruelas de barro irregulares, o fardo pesando. Na vista, apenas casebres com a porta fechada. E vai, vai. Ao passar a BR, senta no meio-fio e espera a condução. Com o céu já lilás ele sobe no “Tambaú” lotado.
A viagem- sim, viagem- é turbulenta. Com o saco de amendoins e castanhas entre as pernas, Marinésio luta para não adormecer de pé. O calor se aproxima. Numa freada brusca, o equilíbrio pede licença. Ah, não fosse a senhora gorda sentada ao lado... Ótimo amortecedor. Depois de muitas desculpas e caras feias a viagem segue.
Quando nosso ambulante desembarca na praia de Tambaú já são quase seis e meia. Ele apruma o peso da mercadoria nas costas e começa a peregrinação pela orla pessoense. De cara, encontra um casal de idosos caminhando. A última coisa que um casal de idosos compraria durante um cooper seria um saco de amendoins, não é? Mas são almas boas, se compadecem de Marinésio e compram não um, mas três saquinhos. E agora? Não tem troco.
-Pode ficar, não tem problema.
Nosso herói agradece a gentileza com um sorriso desfalcado e segue seu rumo. E vão surgindo turistas, mais gente caminhando, concorrentes, crianças de patinete. O calor aumenta, o fardo pesa. Ele olha pro sol como quem implora por piedade, os olhos ardem muito. E segue, segue.
Quando imagina que passou das onze horas, Marinésio, que há muito arenga com uma pontada no estômago, resolve parar pra comer as broas de milho. Pede água num boteco, e o garçom, abusado, enche um copo na torneira. Enquanto mastiga as broas sem gosto, Marinésio pensa: “Hoje vai dar certo!”.
Após o desjejum, a caminhada continua. E vendendo mais, mais, mais. O fardo vai ficando mais leve, o bolso, mais pesado. Enquanto percorre o calçadão, vê uma boneca de plástico jogada, já toda retorcida pelo sol. Lembra das filhas em casa, disfarça a vergonha e se abaixa para pegar o brinquedo, guardando-o na bolsa. Por volta das duas da tarde o calor aperta, impiedoso. Marinésio pára e contempla o mar pela primeira vez, desde que começou sua jornada de hoje. Sente a brisa aliviar as chicotadas do astro-rei, mas é só ilusão. Logo o castigo recomeça. E o pobre vendedor vai andando mais devagar, quase se arrastando. A boca árida pede clemência. Junto de uma lufada de ar, vem um punhado de areia, que incomoda bastante. Um turista estrangeiro observa, penoso, o calvário de Marinésio. Aproxima-se e, por meio de gestos, dá a entender que pretende comprar o restinho de sua mercadoria. Nem era muita coisa, mas fazia tempo que o fatigado ambulante não tinha essa sensação de dever cumprido. Vendera tudo.
Pensava na volta pra casa, mas sentia as pernas desobedientes. Estava totalmente sem forças, acabado, derretido pelo sol. Sentia-se tonto. De repente, como que por mágica, tudo parou. Marinésio teve um pensamento, acompanhado de um calafrio. Nada mais importava, nem o sol, nem o mar, nem o brilho das estrelas. Foi como um lapso temporal, uma sensação indescritível. Ele reuniu o resto do ânimo que tinha e marchou apressado até a barraca defronte. Sob o olhar maldoso dos funcionários, pensou, pensou, pensou; fez contas e mais contas intermináveis. Depois de muito confabular consigo mesmo, meteu as mãos nos bolsos e tirou toneladas de moedas, jogando-as em cima da mesa mais próxima. Sentou-se, piorando ainda mais o semblante dos garçons, e começou a contar aquela infinidade de centavos tão suados. Contou, recontou, conferiu, conferiu de novo, e mais uma vez, e outra, e outra. Então o tempo parou novamente. Se me perguntassem o que é felicidade eu precisaria de uma foto. Uma foto desse momento. Eu, certamente, teria muitas dúvidas sobre o que é medo, apreensão, tristeza... Mas felicidade, agora, seria muito fácil de exemplificar. Marinésio olhou para o garçom que já vinha em sua direção, para expulsá-lo. Olhou com um brilho tão intenso nos olhos que o rapaz estremeceu. Abriu um sorriso tão lindo, mas tão lindo, que, daquele jeito, nunca houvera sido registrado nas praias da Filipéia. Estava longe de ser plástico, é bem verdade. Um sorriso estragado, falho, desfalcado; lindo, sincero, contagiante. Nessa hora o sol amenizou-se, a brisa soprou fresca, o barulho da rua cessou e o mar ficou ainda mais bonito. Marinésio, domando sua euforia da melhor maneira que era possível, conseguiu apenas murmurar:
-Uma cerveja.
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Um comentário:
Deu vontade de chorar...
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